Carolina Maria de Jesus – Quarto de Despejo

Carolina Maria de Jesus, uma mulher extremamente pobre e simples, demonstrava um enorme senso crítico. Com sua paixão pela leitura, Carolina escreve um diário – Quarto de Despejo – Diário de uma favelada –, que narra uma história de dor, fome, sofrimento e angústia dos favelados na São Paulo dos anos 1950. O texto de Carolina é um dos marcos da escrita feminina no Brasil.

Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, é literatura?

Ao iniciar a leitura do livro, de imediato, qualquer pessoa, poderia dizer: “Não! De fato, esse livro não é literatura”. Mas que argumentos essa pessoa utilizaria para sustentar sua afirmação? Creio que ela responderia: “É bastante claro que a linguagem utilizada e a ortografia do texto é suficiente para classificá-lo como não literário”.

Porém, utilizando argumentos de Antonio Candido, Márcia Abreu e Tzvetan Todorov, respectivamente em “O direito à literatura”, Cultura letrada e A literatura em perigo, vou pensar o livro de Carolina como literatura.

O gênero do livro de Carolina não é comum entre os livros literários, mas esse gênero permite que ela organize o seu texto em consonância com as formas ordenadoras que Antonio Candido diz serem necessárias para um livro ser considerado literatura. Quais formas ordenadoras estão presentes em Quarto de despejo? Carolina quase sempre inicia o texto do dia contente ou indo pegar água, segue-se uma constante luta em busca de alimento e finda-se com ela cansada ou satisfeita com o dia.

Outro argumento é a humanização, defendida tanto por Márcia Abreu como por Antônio Cândido e Tzvetan Todorov. Para Abreu, a literatura nos transforma em pessoas melhores, nos proporciona saber como é estar na pele de uma pessoa que leva uma vida diferente da nossa, passando por situações inusitadas. Em geral os leitores se identificam com os personagens e acabam se tornando mais humanos.

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 Carolina Maria de Jesus durante a noite de autógrafos do livro Quarto de Despejo, em São Paulo, 1960.

Para Candido, a humanização pode ser entendida como o exercício da reflexão, o afinamento das emoções, a empatia para com o próximo, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, a aquisição do saber, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. Consigo ver isso claramente quando Carolina diz: “… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.” (p.26). Para algumas pessoas, será apenas uma frase qualquer, mas se observada com atenção ela pode fazer qualquer um refletir sobre o impacto que isso pode causar no leitor. Quanta fome Carolina passou a ponto de identificar a fome como professora? Como eu me sinto em relação a essa frase? Como você se sente em relação a essa frase? Creio que o sentimento das pessoas que leem esse fragmento de Quarto de Despejo seja semelhante ao meu. Um sentimento de tristeza, causado pela impotência que sentimos diante de situações assim, porém, isso nos torna pessoas melhores, pois o nosso esforço para ajudar pessoas menos favorecidas que nós será maior.

Por último, mas não menos importante, gostaria de considerar reflexões de Todorov. Ele afirma que a literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Lendo o texto de Carolina eu vi a literatura estendendo a mão a ela, depois de um dia muito cansativo, Carolina, escreve: “Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.” (p.22) Mesmo com todas as suas preocupações, desilusões e luta Carolina ainda consegue um tempo para ler, isso é muito precioso, ela não dorme sem ler, ela classifica o livro como a melhor invenção do homem. Você já parou para pensar por que Carolina não consegue dormir sem ler? Por que ela classifica o livro como a melhor invenção do homem? Todorov já nos deu a resposta para essas perguntas, Carolina escreve isso porque a literatura é o seu refúgio.

Partindo dos argumentos de Abreu, Candido e Todorov a respeito da humanização, Quarto de Despejo está bem amparado, pois nos traz temas como a fome, o alcoolismo, o preconceito, o consumo, o sofrimento, a violência, a religião, entre outros temas sobre os quais a sociedade precisa refletir.

Antonio Candido afirma: “Ela – a literatura – tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos”. Depois de ler Quarto de Despejo e essa citação de Candido, eu pergunto: Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, é literatura?

Tzvetan Todorov – A Literatura em Perigo

Segundo Caio Moreira apresenta na introdução do livro A Literatura em Perigo, para aqueles que estão familiarizados com o trabalho do Tzvetan Todorov, o livro em questão será uma surpresa. Todorov ficou conhecido ao longo do século XX como um estudioso da abordagem formalista, tendo em muitos de seus livros uma “aplicação direta do estruturalismo no campo da literatura”.

Durante a minha leitura do livro A Literatura em Perigo fui apresentada a uma nova forma de estudá-lo: dividindo-o em três partes. Na primeira parte – Prólogo, A literatura reduzida ao absurdo e Além da escola – o autor dá ao texto um tom autobiográfico. Neste primeiro bloco Todorov nos apresenta a sua relação com a literatura. Analisa e faz uma crítica ao estudo e o ensino da literatura em escolas de nível médio e superior na França que, segundo, o autor possui um caráter estruturalista, enquanto, em meio a tudo isso, levanta importantes questionamentos como: “ao ensinar uma disciplina, a ênfase deve recair sobre a disciplina em si ou sobre seu objeto? ”.

No segundo bloco – Nascimento da estética moderna, A estética das luzes e Do romantismo às vanguardas – o autor analisa, de forma didática, como a literatura foi pensada e estudada durante os séculos. Essa análise passa por Aristóteles e a poesia como imitação da natureza e Horácio, como algo que deve agradar e instruir. Logo depois, temos o Renascimento e a poesia bela definida pela verdade e sua contribuição ao bem. Seguindo para o Iluminismo, o Romantismo, o autor vai analisando assim a relação da poesia, ou da literatura, com o autor e com os leitores.

No terceiro e último bloco – O que pode a literatura e Uma comunicação inesgotável – Tzvetan Todorov discorre sobre o poder da literatura que “pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver”, em outras palavras, humaniza.  Todorov conclui, no fim do livro, que o ensino da literatura não deve ser feito apenas para ilustrar e introduzir conceitos, mas sim como exemplo, com uso de obras literárias, das diversas aplicações da linguagem e do discurso.

Um último tópico que gostaria de abordar foi citado nas primeiras linhas do texto e diz respeito às críticas realizadas por Todorov sobre as abordagens formalista, ou “concepção redutora da literatura”, e marxista. O autor aponta que essa visão estruturalista não está presente somente no ensino, como também em várias obras literárias que cultivam “a construção engenhosa, os processos mecânicos de engendramento do texto, assimetrias, os ecos e os pequenos sinais cúmplices”. Quanto à crítica sobre os estudos literários marxistas, esta ocorre principalmente quando o autor se refere à submissão da literatura aos objetivos políticos do momento. No lugar de ambas as abordagens, Todorov propõe a visão da literatura humanizadora, ou seja, um estudo da literatura que estimule reflexão.

Foto: O filósofo Tzvetan Todorov, em sua casa em Paris por Eric Hadj