Roberto Acízelo – Teoria da Literatura (Parte 1)

Roberto Acízelo de Souza é considerado um dos mais respeitados estudiosos brasileiros nas áreas de teoria da literatura e literatura brasileira. Em seu livro Teoria da Literatura (2007), ele apresenta seus pensamentos de forma didática, trazendo conceitos e contrastes entre estes conceitos que facilitam o entendimento do conteúdo.

Teoria e Senso Comum

Para introduzir o assunto, o autor trabalha com os conceitos de Teoria e Senso Comum relacionados à literatura. Para ele, na Teoria é necessário questionar, problematizar, estudar, descrever e não normatizar, “criar problema(s) onde o senso comum não vê obscuridades cujo esclarecimento justifique o empenho da razão analítica” (p.8).

A ideia de Senso Comum é a do óbvio e, no caso da literatura, essa noção é difusa e naturalizada, “difusa porque o vocábulo “literatura” (…) não corresponderia a um conceito, isto é, a algo abstrato, definido ou delimitado (…) e naturalizada porque corresponderia a uma idéia (sic.) comunitariamente admitida como tão normal, tão natural, que não pode encerrar nenhum problema” (p.7).

Assim, o conceito de literatura segundo o Senso Comum é o do óbvio, uma obra escrita, por exemplo, mas sem delimitar regras ou ir mais a fundo sobre o assunto. Para a Teoria, a literatura deve ser estudada, problematizada, sem necessariamente impor regras.

Normativismo e Descritivismo

Quando se fala sobre teorizar a literatura, Acízelo chama atenção para o fato de que “o que problematiza pela primeira vez a literatura é a própria literatura” (P.9). Segundo essa problematização, “a origem da literatura é o ensinamento dos deuses; sua natureza consiste em ser uma narrativa dotada de especial poder de encantamento; sua função é reconstituir com fidelidade as ações dos heróis” (p.11)

Assim, ele apresenta as diferenças entre duas atitudes teóricas (em um sentido amplo, de problematização) relacionadas a literatura, o Normativismo e o Descritivismo. O primeiro absolutiza determinados valores para a literatura, tido como mais elevados, cria dogmas que orientam tanto a produção dos escritores quanto a avaliação crítica das obras. A segunda “favorece uma especulação aberta, afeiçoada à discussão de hipóteses explicativas diversas”. Ou seja, o Normativismo é dotado de regras, o “deve ser assim”, o Descritivismo trabalha com hipóteses, “o que?”, “como?”.

Estudo e Fruição

As duas atitudes teóricas acima descritas são similares em um ponto, aquele em que considera a literatura como objeto de estudo. Assim, Acízelo vai diferenciar Estudo, “consideração metódica tendente à sistematização de conceitos ou regras” (p.16), de Fruição, “o registro de um sentimento, uma impressão, um julgamento emanado da subjetividade”, “subjetiva e desinteressada de métodos e conceitos” (p.16).

O Estudo necessita de método, especulação, descrição e conceitos, enquanto que a Fruição é totalmente subjetiva, baseada em sentimentos e impressões.

Foto: Roberto Acízelo de Souza em evento da Academia Brasileira de Letras. Imagem: reprodução do YouTube

Na saúde e, principalmente, na doença

O primeiro contato que tive com Carolina Maria de Jesus foi em maio de 2017 e já de pronto percebi que eu teria uma leitura sofrida. Porém, ao contrário do que eu possa ter dado a entender com as minhas palavras, o que eu chamo de sofrer não se refere à qualidade ou ao gênero do livro, mas sim à imensa empatia que costumo ter com os personagens das mais diversas histórias, ainda mais no caso de Carolina que escreve um diário sobre acontecimentos reais vividos na favela do Canindé que ficava às margens do rio Tietê em São Paulo. As aflições e provações experimentadas pelas personagens costumam ter um reflexo emocional muito forte em mim e não foi diferente com Carolina.

No livro “Quarto de Despejo”, acompanhamos 262 dias de sua vida de forma resumida (por ela) e editada (pelo jornalista Audálio Dantas). São 13 dias referentes ao ano de 1955, 173 dias de 1958, 76 dias de 1959, e 1 de 1960, todos vividos em uma comunidade paupérrima da capital paulista. E, por mais que eu e Carolina sejamos duas pessoas com realidades culturais e sociais totalmente diferentes, uma negra da favela e uma branca de classe média, é impossível para mim não fazer conexões com a vida de minha família, por exemplo, e é mais impossível ainda não me entristecer com tudo o que ela viveu.

Os pontos de convergência entre as histórias começam pelo ano de 1958 (ano de nascimento de minha mãe), passando pela vida difícil em São Paulo (os 13 anos em que ela morou no distrito de Campo Limpo conhecido pelas diversas colônias de imigrantes, entre eles, os italianos – minha vó, e portugueses – meu avô), e a afinidade com a leitura e os episódios relacionados à fome e também às pequenas felicidades, normalmente relacionadas a comida, como quando ela me relatava com um forte brilho no olhar que, em dias especiais, o meu avô comprava uma maçã e a dividia entre os oito filhos, e como esse ato simples era uma das maiores felicidades que tinham.

Enfim, minha mãe cresceu, teve chances que Carolina não teve e hoje eu tenho mais oportunidades ainda que elas. Isso só ressalta a importância de Carolina e de seu aparecimento na literatura. Em seu diário editado e publicado, “Quarto de Despejo”, a principal temática é a fome, a falta de alimentos para ela, seus filhos e os outros moradores da favela que viviam em condições precárias. Já no início da leitura, uma das sentenças mais marcantes da autora, “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”. Ao ouvi-la pela primeira vez em aula, associei imediatamente a fala célebre e emocionante da personagem Scarlett O’Hara no filme “E O Vento Levou”: “Eu juro por Deus, jamais sentirei fome novamente”. Apesar de serem personagens e discursos diversos, a realidade e a ficção ganharam unidade em minha mente pela emoção que me foi transmitida e pela temática impactante.

A fome está tão presente no livro de Carolina quanto à própria personagem. Este assunto e as falas relacionadas a ele foram amplamente discutidas nas aulas. Assim, resolvi focar em uma temática que também se trata de uma consequência dele. Se há fome, há a impossibilidade de não comer e a urgência em fazê-lo, logo, há também uma negligência com os aspectos básicos relacionados à saúde, como a origem dos alimentos, a higiene, o saneamento básico e a assistência de saúde, enfim, uma confluência de fatores que resulta na presença de diversas doenças e mal-estares passados por Carolina, seus filhos e outros personagens.

Pude observar e contabilizar que cerca de 60 dias de seu diário tem passagens relacionadas a doenças e indisposições físicas e mentais, além de falecimentos. Ou seja, aproximadamente um quarto da vida de Carolina é vivida em contato direto com essas agruras, isso ainda sem poder contabilizar os dias que não estão registrados no diário e eventuais ocasiões que podem ter sido editadas por Audálio ou omitidas pela própria autora. Durante os três dias em que, de fato, pude me dedicar à obra (18 a 20 de maio) fiquei impressionada com a quantidade de enfermidades e indisposições de Carolina que, mesmo com a presença delas, insistia em sair para trabalhar, pois, de outra forma, não teria como colocar comida na mesa para si e para os filhos. Em muitas passagens ela deixa claro esse aspecto angustiante de sua vida, como em 10 de julho de 1958, “… Estou tão indisposta que se eu pudesse deitar um pouco! Mas eu não tenho nada para os meninos comer. O único jeito é sair.”

A preocupação em alimentar os filhos também aparece em uma história narrada por ela no dia 22 de maio de 1958, este é um dos acontecimentos do livro que me deixou mais aflita e indignada, “Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social. Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social”, depois de ter sido orientada a ir à diversos lugares, ter gastado todo o seu dinheiro com condução e ter retornado ao primeiro local, Carolina acaba por ser detida à mando do, como ela chama, ‘falso filantrópico de São Paulo’, Dr. Osvaldo de Barros, simplesmente por ter narrado sua busca infrutífera e deixado claro sua situação atual por conta de um mal serviço prestado.

A batalha diária da escritora catando papel e outros materiais também a faz passar mal ou ficar com partes do corpo doídas de tanto carregar peso. No dia 20 de julho de 1955, ela narra um desses episódios, “…Vendi o papel, ganhei 140 cruzeiros. Trabalhei em excesso, senti-me mal. Tomei umas pílulas de vida e deitei. Quando eu ia dormindo despertava com a voz do senhor Antonio Andrade discutindo com a esposa”. Isso ocorre de forma constante, em 14 e 16 de agosto, respectivamente, ela narra, “O saco de papeis estava muito pesado e um operário ajudou-me a erguê-lo. Estes dias eu carreguei tanto papel que o meu ombro esquerdo está ferido” e “Depois fiquei cançada. Voltei para casa. Estava tão cançada que não podia ficar de pé. Tinha a impressão que ia morrer. Eu pensava: se eu morrer, nunca mais hei de trabalhar assim. Eu estava com falta de ar”.

Esta falha na respiração surge de forma abrupta no livro e de pronto a relacionei com a causa do falecimento de Carolina, uma crise de asma. Raciocinando bem, ela quase nunca vai ao médico e nunca mencionou ter asma em nenhum momento de seu texto. Assim, fico imaginando que se ela tivesse acesso a um sistema de saúde público de qualidade e descobrisse ter asma, ela poderia ter vivido mais, bastava ter um tratamento adequado. Porém, é impossível esperar que essa oportunidade chegue para alguém que não sabe nem o que irá comer no dia.

A escassez de alimentação faz com que Carolina passe mal diversas vezes ao longo de seu livro. Em 27 de maio de 1958, ela relata “Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura da fome é pior que a do alcool. A tontura do alcool nos impede de cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago”. Quatro dias depois, ela continua, “E fritei o ovo para ver se parava as náuseas. Parou. Percebi que era fraquesa. O medico mandou-me comer óleo mas eu não posso comprar, (…)”. Em 14 de junho do mesmo ano, “Já que a barriga não fica vazia, tentei viver com ar. Comecei a desmaiar. Então eu resolvi trabalhar porque eu não quero desistir da vida”.

A luta contra a fome é uma das maiores causas, direta ou indiretamente, das doenças e mal-estares das pessoas da favela, como os episódios em que seus filhos ficam doentes e José Carlos chega a expelir 21 vermes de seu corpo. Essa infestação atinge diversas crianças da favela, como deixa claro Carolina na passagem do dia 19 de junho de 1958, “…A Vera ainda está doente. Ela disse-me que foi a lavagem de alho que eu dei-lhe que lhe fez mal. Mas aqui na favela varias crianças está atacadas com vermes”.

Por causa dela, a escritora passa mal até porque não está acostumada com a fartura e a qualidade dos alimentos. Na casa de Dona Julita, o discurso é constante, “Ela fez o almoço. E eu almocei. A Vera comia e dizia: – Que comida gostosa! A comida da Dona Julita me deixa tonta”. O ocorrido foi em 06 de novembro de 1958, já em 17 de janeiro de 1959, “…Eu fui na Dona Julita. Ela deu-me comida, eu esquentei e comi. Acabei de comer, fiquei triste. É que a comida de lá é muito forte. Sopa, carne e outras iguarias. Quando o pobre come uma comida forte, dá tontura”.

Apesar de todas as agruras enfrentadas, todas as doenças e episódios de fome pelos quais passa, Carolina ainda tem esperanças em publicar seu diário. Ela também tem nos livros seu maior alento e é com essas passagens que me enchem de ternura que eu termino este texto, “Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem” (24 de julho de 1955), “Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer: – Muito bem, Carolina!” (27 de junho de 1958). Enquanto isso, eu por aqui repito em voz alta, “Muito bem, Carolina!”.

Foto: Carolina em junho de 1960 na janela de um barraco, em São Paulo. Imagem pertencente ao arquivo da Folhapress