MÁRCIA ABREU – O QUE É LITERATURA? (PARTE 2)

Continuação dos capítulos da obra Cultura letrada: literatura e leitura da professora da UNICAMP, Márcia Abreu.

O quarto capítulo, intitulado como “A Literatura é forma de humanização do sujeito” – quando os leitores se contam aos milhares, é introduzido com alguns pontos de vista acerca da Literatura, o quão humanizadora ela pode ser, nos fazendo viver novas experiências, encarar novos pontos de vistas, ampliando nossos conhecimentos, nos tornando pessoas mais solidárias e por fim, “humanas”. Mas, da mesma forma, pode nos prender a uma mesmice, em uma mesma trama, nunca nos fazendo pensar, questionar e enxergar novos horizontes. Nesse ponto de vista, as Grandes Literaturas nos transformam em pessoas melhores, enquanto os best-sellers  nos alienam. Porém, não é bem assim, existem pessoas boas que nunca sequer leram um livro e pessoas ruins que tem uma prateleira de livros eruditos, como os nazistas que liam Goethe. Conclui-se que só porque uma pessoa age com humanidade não significa que ela lê livros eruditos e antigos ou só porque uma pessoa age de má-fé não significa que ela lê best-sellers, e vice-versa.

Posteriormente, Abreu apresenta uma pesquisa feita com três pessoas totalmente distintas. Um é brasileiro e vive na favela, a outra é argentina e é bibliotecária, e a última cursa medicina e é italiana. A semelhança entre os três é o autor Paulo Coelho que, conhecido por vender milhares de exemplares por todo mundo, a crítica não o inclui como Grande Literatura, ainda que seus leitores reconheçam que aquela leitura os fazem refletir, questionar e terem mais experiências em diversas áreas, comparando-o com grandes obras, como O finado Matia Pascal de Pirandello. À vista disso, o argumento contraria boa parte da crítica literária, que acredita que os best-sellers são uma leitura alienadora, ao invés de humanizadora. Na verdade, leitores cultos de diferentes países e classes sociais consideram as obras de Paulo Coelho como Grande Literatura humanizadora.     

Em seguida, Abreu analisa o filme Louca Obsessão, dirigido por Rob Reiner, em 1990, e baseado no livro Misery de Stephen King, que conta a história de um escritor de sucesso, Sidney Sheldon e uma fã louca, obsessiva pela obra, Annie Wilkes. Após narrar a história do filme e analisar a questão estética e seus parâmetros, Abreu discute a intenção do filme: retratar uma crítica aos best-sellers e a pressão da sociedade e do comércio para obras com tais parâmetros. Mas não, Abreu nos surpreende, declarando que o filme “nos faz experimentar o veneno que critica”, pois o filme apresenta exatamente a mesma natureza da trama que ocorre na obra Misery, nós, espectadores, reagimos da mesma maneira quando vemos o filme que contém tal conteúdo.  

“Todos caímos na armadilha, mas alguns de nós estigmatizam esses leitores” (ABREU, p.92)                                                                                                                                                          Quase finalizando, no quinto capítulo, nos é posto dois especialistas em literatura com opiniões antagônicas acerca do escritor Jorge Amado. Abreu nos mostra que não existe apenas diferença em opiniões por se tratar de um especialista em literatura e um(a) leitor(a) de best-sellers, mas, da mesma maneira, existe a opinião distinta entre os próprios críticos, especialistas etc. Depois, Abreu questiona: “Ser apreciado por muitos é bom ou ruim? Você decide”. Abreu vai mapeando os incríveis alcances das obras de Jorge Amado, ainda que fosse discutido se as obras de Jorge Amado eram boas ou ruins, as vendas de exemplares era altíssima. Mas, essas divergências de opiniões não ocorreram apenas com o baiano. Shakespeare foi bastante criticado pelo escritor inglês Samuel Pepys e, em 1768, pelo filósofo francês Voltaire, declarando que a obra – atualmente contemplada e canonizada – Hamlet, era um drama vulgar e bárbaro. Abreu vai desenvolvendo uma dissertação de diversos escritores renomados que foram criticados por outros escritores também renomados, como James Joyce, autor de Ulisses, que a escritora inglesa Virginia Woolf declarou ser um fracasso.

Em seguida, é abordado a questão de que em 1775, o médico suíço Simon-Andre Tissot publicou um livro que redigia acerca do perigos que a leitura oferecia para a saúde do homem, trazendo vários sintomas e consequências que os ser humano poderia sofrer por causa da leitura. E não existia apenas esse médico defendendo a hipótese de que o abandona da leitura levaria a uma vida mais saúdavel, J. G. Heinzemann e Johann Adam Bergk, ambos cientistas da época, também se preocupavam com a saúde dos leitores assíduos. Além disso, Abreu expõe preocupações da classe alta com a alfabetização de pessoas “erradas”, entre elas os pobres, trabalhadores e principalmente as mulheres.

As mulheres não podiam ler principalmente romances, pois nesse gênero era que elas aprenderiam malícias e seriam infiéis aos seus maridos, trazendo a elas desejos e vestígios impuros. Foi dessa forma que a questão dos livros de romances ser um perigo para as mulheres chegou ao Brasil, desse modo se desaconselhava meninas a lerem romances nas escolas no século XIX.

Abreu compara com os dias atuais, que é imposto para os jovens lerem as Grandes Literaturas, ou seja, os livros mais antigos, os romances dos séculos passados, os consagrados que antes eram perseguidos, enquanto as obras atuais que às vezes os interessam mais, como gibis, best-sellers, ou enredos sentimentais, eróticos, lutas marciais, e etc, são obras condenadas pelos professores e consideradas “incultas”.

Não há uma literariedade intrínseca aos textos nem critérios de avaliação atemporais.

                                                                                                    ABREU, p 107.

Por fim, o sexto capítulo e conclusão, Somos todos diferentes, tem um título que já diz bastante sobre o que será dito. Abreu argumenta que a definição de literatura não é algo objetivo e universal e retoma a existência das instâncias que legitimam a Grande Literatura, frisando, novamente, a importância da opinião de cada grupo, explicando que cada grupo tem seus princípios e parâmetros e formas de analisar histórias, poesias, encenações, músicas etc. Abreu explícita que a proposta do seu livro é analisar as obras dentro do sistema de valores em que foi criada, em vez de ser compreendida dentro de um único critério, deixando claro que não existirá literaturas boas ou ruins para todos. Então, Abreu finaliza reafirmando que é necessário ler todos os tipos de literaturas para que assim haja espaço para diversidade de textos e de leituras, pois cada cultura tem sua maneira de ler e compreender a literatura, assim sendo, deve ser respeitado o espaço do outro. E Abreu finaliza o último parágrafo dizendo: Não há obras boas e ruins em definitivo. O que há são escolhas e o poder daqueles que as fazem. Literatura não é apenas uma questão de gosto: é uma questão política.

Márcia Abreu – O que é literatura? (Parte 1)

marcia abreu

Professora Márcia Abreu, do Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP. Imagem: disponível em Sala de Imprensa –  Jornal da Unicamp

A obra Cultura Letrada  – Leitura e Literatura, da professora da Unicamp, Márcia Abreu, é uma incrível introdução à literatura, e também, um didático apoio para quem está iniciando os estudos em Teoria da Literatura, além disso, para nos instigar a não responder o óbvio quando nos for perguntado: O que é literatura? ou O que é considerado literatura erudita?

Falarei acerca de alguns capítulos nesta postagem e o restante em uma próxima postagem, ok?

O livro tem 128 páginas e os assuntos são divididos nos seguintes capítulos:

  1. Introdução: Literatura, leitura, cultura.
  2. “Ninguém deixará de reconhecer a excelência da estética dessas páginas”  – o texto literário e o seu valor
  3. “Infelizmente, não poderemos publicar o sua obra”  – o nome do autor e o juízo estético
  4. “Versos simples e rudes produzidos pela cultura popular”  – o nome do autor e o juízo estético
  5. “A Literatura é forma de humanização do sujeito”  – quando os leitores de contam aos milhares
  6. “É, sem dúvida, uma obra-prima de todos os tempos”  – os critérios de avaliação e o tempo
  7. Conclusão: Somos todos diferentes

Após o sumário, Abreu  nos apresenta um curto diálogo entre uma professora e seus alunos, cada um apresentando seu ponto de vista acerca de literatura boa ou não. A professora pontua a importância da leitura dos clássicos e de livros consagrados, enquanto os alunos retrucam, explicando o que eles preferem. A partir daí, Abreu inicia seus questionamentos: todos devem apreciar os mesmos tipos de textos?

Em seguida, na introdução, Abreu expõe listas que elegem os melhores livros do século, os melhores escritores brasileiros do século, e, por fim, os livros de ficção mais vendidos do ano de 1999. Dessa maneira, a autora demonstra que “não há consenso quando se trata de gosto, e especialmente, de gosto literário” (ABREU, 2006). Mas, ela também nos apresenta que, assim como os leitores divergem em gostos literários, os rankings também são relativos e sempre haverá distinção sobre qual é o melhor, pois todos nós temos gostos distintos.

O primeiro capítulo inicia com um texto analisado em “close reading” por Márcia Abreu, detalhando os elementos próprios da constituição de narrativas: personagens, enredo, ambiência, linguagem, tempo e foco narrativo. Então, a autora inicia análises e discussões a partir de um texto aleatório de um jornal, de um texto escrito por uma criança e de uma obra de um poeta que provavelmente está entre os melhores do Brasil, entretanto, os textos comparados têm os mesmos parâmetros e princípios, mas um é considerado literatura e o outro “precisa de  correção”. Ainda que os textos apresentem as mesmas características, não são vistos da mesma maneira, uma vez que o poema é de um autor consagrado e o outro poema é de uma criança de dez anos. Como dito por Abreu: A beleza está nos olhos de quem lê. É a partir daí que ela nos conduz ao questionamento sobre qual a diferença entre os textos? Por que um é considerado literatura e o outro não?

“Esses casos devem ter deixado claro que a literariedade não está apenas no texto – os mais radicais dirão: não está nunca no texto – e sim na maneira como ele é lido. Um “mesmo” texto ganha sentidos distintos de acordo com aquilo que se imagina que ele seja: uma carta ou um conto, um poema ou uma redação” Abreu, p.29.

Em seguida, é apresentada uma questão de vestibular que tratava da definição de literatura, em 2000. Detalhadamente, Abreu tenta resolver a questão de vestibular. Entre uma comparação e outra, utiliza os termos “legitimação” e “Grande Literatura”. Ambas têm ligação, pois a legitimação das obras literárias ocorrem quando algumas instâncias de legitimação classificam uma obra como literária e, às vezes, como Grande Literatura. Mas aí nos perguntamos: e o que são as instâncias de legitimação? Como são várias, citarei algumas: universidades, revistas especializadas, editoras, bienais, prêmios, monumentos e etc. Então, uma obra será legitimada como Literatura quando for reconhecida ou legitimada por uma dessas instâncias ou, de preferência, por várias.

O segundo capítulo inicia com um quadro que inicialmente parece um quadro muito simples e, para alguns, nada artístico, até explicitar que se trata de uma obra de uma artista plástica bastante legitimada, Tomie Ohtake. Ao longo do capítulo, nos são evidenciadas diversas obras que não receberam prestígio até ser revelado que fossem de um autor renomado, como Machado de Assis. Em 1999, a Folha de São Paulo fez uma “pegadinha”, enviando a obra Casa Velha sem dizer que era de Machado de Assis, para editoras. Em seguida, nenhuma das editoras nem sequer se interessaram pela obra, nem reconheceram que era de um autor consagrado e canonizado. No mesmo capítulo é discutido comparações de obras de séculos passados, como poemas gaélicos de Ossian, James Macpherson, Mário de Andrade, e etc. Deste modo, Abreu argumenta que para compreender uma obra deve ser compreendido também o contexto sociocultural que ela se insere: é importante levar em conta o gênero no qual a obra é produzida e o autor, para que o leitor compreenda de forma adequada, tomando como base que o considerado literatura hoje não é o que se considerava nos séculos passados

Abreu introduz o terceiro capítulo dissertando acerca dos diferentes gostos literários, que, como comentado no segundo capítulo, varia de época para época e também de formação social, grupo social e por aí vai. Abordando a temática de leitura, Abreu comenta sobre o fato de muitos pensarem que brasileiro não tem interesse pela cultura, dessa forma, ela inicia a história dos folhetos – os cordéis –, informando que a publicação dos folhetos começa no final do século XIX, na Paraíba, e que eram vendidos milhares de folhetos, em todos os cantos, tornando possível seu conhecimento também pelo grande número de analfabetos. Entretanto, para ser um cordelista não era tão simples assim, como explicado na página 62, os folhetos tinham formatos métricos, quantidade de versos para cada formato e, ainda, cada tamanho determinava também o gênero dos escritos. Conclui-se que não era um literatura popular tão simples: era preciso associar destreza poética e habilidade comercial. Em seguida, Abreu nos apresenta os três princípios da composição poética: métrica, rima e oração.

Após algumas apresentações de formatos dos folhetos de cordel, nos é mostrada a história de uma antropóloga, Laura Bohannan, que estava em contato com os Tiv, povo da África Ocidental. Bohannan conta aos Tiv a história de Hamlet. Os anciões Tiv eram muito críticos e examinaram a obra de Shakespeare de uma maneira muito distinta do que, em geral, faziam os europeus. Em seguida, Abreu comenta que, assim como os Tiv criticaram Hamlet, o cordelista João Martins de Athayde também não viu a famosa tragédia de Romeu e Julieta como uma boa obra, levando em consideração que os valores literários do cordelista nordestino visam honra familiar e vingança. Dessa maneira, Abreu compara a interpretação dos Tiv com a questão da variedade de significações que uma obra tem dependendo do grupo cultural que está lendo. Desse modo, Abreu afirma não existir uma apreciação estética universal. A interpretação de uma obra dependerá de quem lê, em que contexto está, do grupo social, da época e do gênero em questão.